Racismo ambiental tem relação com o trabalho sexual masculino como estratégia de sobrevivência no Recife
14/08/2025
(Foto: Reprodução) Praia de Suape fica no Cabo de Santo Agostinho, no Grande Recife
Reprodução/Google Street View
Recife sempre conviveu com enchentes ocasionadas pela degradação ambiental em função do alto índice de desmatamento em áreas de manguezais e de várzeas. Uma das maiores delas ocorreu em maio de 2022, quando chuvas torrenciais caíram na cidade por pelos menos duas semanas seguidas, causando inundações em diversos bairros da cidade, como na comunidade de Brasília Teimosa.
Consideradas como um evento climático extremo, estas chuvas ocorreram quando eu residia na cidade a fim de realizar o trabalho de campo para minha pesquisa de doutorado em Antropologia a respeito do trabalho sexual masculino. Como Brasília Teimosa concentrou a maior parte das narrativas que obtive, fui testemunha de como as mudanças climáticas atingem sobretudo populações mais vulneráveis.
Estratégias emergenciais de sobrevivência
A destruição total de diversas moradias e a flagrante ausência de respostas efetivas do poder público agravaram a vulnerabilidade socioeconômica dos moradores, forçando muitos jovens, especialmente homens que fazem sexo com homens (HSH), a recorrerem a estratégias emergenciais de sobrevivência em função da limitada rede de apoio local.
Assim como todos que perderam suas casas ou seus pertences nas enchentes, estes rapazes se viram diante da urgência em refazer suas vidas, enfrentando um obstáculo a mais: o preconceito e a segregação.
Sem moradia e com uma rede de apoio fragilizada, alguns desses jovens encontravam no trabalho sexual uma estratégia imediata de subsistência. A proximidade entre Brasília Teimosa e o bairro de classe média alta do Pina, especialmente na faixa de praia onde a comunidade LGBTQIA+ conquistou visibilidade e pertencimento, incluindo a presença de trabalhadores do sexo masculino, facilitou bastante esta escolha.
A reduzida literatura acadêmica produzida sobre este tema no Brasil destaca que, para muitos desses jovens, o corpo assume o papel de principal poder de troca diante de uma realidade marcada pela exclusão econômica, vulnerabilidade ambiental e marginalização social, condições que se agravam significativamente durante os períodos das fortes chuvas.
A atividade do “michê” no Brasil, de uma forma geral, vai além da mercantilização do corpo. Tal prática é um ato de resistência às formas de precarização atravessadas por marcadores sociais como raça, classe e masculinidades hegemônicas, assim como pelas dinâmicas do racismo ambiental, que incidem de forma desigual sobre os corpos dissidentes nas periferias urbanas das grandes cidades.
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Da COVID aos desastres ambientais
Como psicólogo e doutorando em Antropologia pela Universidade de Carleton, no Canadá, viajei para Recife em 2022 a fim de estudar os impactos da pandemia de COVID-19 na população de HSH (homens que fazem sexo com homens) em situação de vulnerabilidade social naquela cidade.
No entanto, meu cotidiano em Brasília Teimosa era marcado pelos efeitos da emergência climática, sobretudo após as chuvas daquele ano. Nas conversas de fim de tarde dos moradores, o assunto era sempre a respeito das perdas materiais e o descaso governamental. Mas meus entrevistados expressavam também outro problema: uma profunda apreensão quanto ao impacto dessas perdas sobre a saúde mental, com palavras como ansiedade, depressão e raiva sendo as mais repetidas, evidenciando uma sensação de forte vulnerabilidade.
A destruição causada pelas chuvas em Recife e a vulnerabilidade psicoemocional dos meus entrevistados em situação de deslocamento forçado indicavam uma virada em minha investigação, que desloca-se para os efeitos do desastre ambiental neste grupo e seu trabalho como profissionais do sexo.
Ao ajustar minha escuta, percebi como esta população é flagrantemente invisibilizada na produção acadêmica brasileira e na grande mídia. Essa invisibilidade torna-se ainda mais pronunciada quando se considera a intersecção entre sexualidades, juventude periférica e crise climática em um campo investigativo ainda pouco explorado no contexto brasileiro.
Racismo ambiental
O que mais me chamou a atenção nas entrevistas foi um fenômeno contemporâneo bastante presente Brasília Teimosa: o racismo ambiental, que se refere à segregação de populações vulneráveis a áreas de alto risco ambiental e exclusão de direitos sociais básicos, perpetuando diversas formas de violência estrutural.
Derick, meu primeiro entrevistado e morador de Brasília Teimosa, descreve bem tal fenômeno. Falando alto e gesticulando muito, seu discurso sobre a perda da casa onde morava com família era tema recorrente, assim como em muitos outros entrevistados.
Talvez uma das razões para Derick se angustiar tanto fosse o fato de a moradia ocupar um lugar simbólico central nas na cultura brasileira. Para além do abrigo físico, ela representa pertencimento, segurança e o exercício pleno da cidadania, sobretudo em contextos periféricos. A moradia se traduz como espaço de resistência e de produção de identidades coletivas.
Assim, Derick é ator e testemunha na hierarquização dos eventos traumáticos. A pandemia de COVID-19 passa a ser percebida como um episódio distante, cujos impactos subjetivos e materiais são considerados menores diante da devastação provocada pelas enchentes de 2022.
O racismo ambiental tem se consolidado como uma das pautas centrais na chamada Conferências das Partes (COP), encontros anuais que reúnem líderes mundiais e representantes de diferentes setores, a fim de promover uma reflexão coletiva sobre formas de mitigar os efeitos de mudanças climáticas e enfrentar os efeitos já em curso no planeta. O tema também estará presente na COP 30, em novembro, em Belém do Pará.
Trabalho sexual para além da troca monetária
Allan foi um dos últimos participantes a ser entrevistado e, assim como seu amigo Derick, iniciou o trabalho sexual após as enchentes de 2022. Ele morava com sua companheira, cursava Educação Física e tinha o sonho de se mudar para São Paulo com a futura esposa. Ambos tinha 21 anos. Embora não tivesse perdido sua casa, Allan viu todos os eletrodomésticos e móveis serem levados pela água, e também repetia palavras como depressão, ansiedade e raiva.
Diferente de Derick, Allan preferia o sexo transacional, no qual os programas são pagos com presentes, ainda que não recusasse pagamento em dinheiro quando oferecido. Essa modalidade de trabalho sexual é comum no Brasil, sendo uma estratégia de elaboração de vínculos afetivos e sociais, na qual a prostituição se insere não apenas como um meio econômico, mas também como uma prática relacional que envolve formas sutis de troca e reciprocidade.
Outra característica do sexo transacional masculino no Brasil é a construção de vínculo com o cliente, que, em muitos casos, é percebido como “amigo”. A relação pode não se estabelecer por meio de uma remuneração direta, mas por um convívio no qual o “amigo” oferece presentes e favores em nome de uma suposta amizade. Trata-se de uma dinâmica que suaviza as fronteiras entre prostituição, afeto e poder, conferindo um caráter mais relacional do que financeiro. Foi nesse contexto que Allan reconstruiu sua casa.
Em uma de suas entrevistas Allan explica que “(…) essa chuva ferrou geral… a gente perdeu tudo. Fogão, geladeira, TV, cama, tudo! Tudo! Ficou foi nada. Parti pro Pina e fiz amizade com os coroas gay e eles me dão uns agrados, tá ligado? Já ganhei TV, cama, armário, roupa. Tudo novinho. Mas eu tenho que… tu sabe, tá ligado? Pô, mas é só ver um pornô e tá de boa. Minha mina não sabe desse job. Mas é só um tempinho e eu vou parar. Mas eles são tipo amigos. É job e não é job”.
Para sua namorada, os móveis e eletrodomésticos novos eram tidos como generosidade dos “amigos”. Esta narrativa parece constituir uma forma de acomodação simbólica, permitindo ao casal manter minimamente sua estabilidade emocional diante da precariedade material após as enchentes.
A ideia de “amigos generosos” é estratégia de sobrevivência, na qual o não dito, o silenciado ou o interpretado de forma ambígua torna-se componente necessário para sustentar o vínculo afetivo do casal diante de práticas socialmente estigmatizadas, incluindo a própria sexualidade do parceiro.
A trajetória de nossos entrevistados nos deu acesso ao amplo universo do trabalho sexual masculino, que vai bem além da simples troca monetária. Sobretudo no contexto brasileiro, o garoto de programa como ator social parece ser atravessado por marcas sociais que transgridem normas de uma masculinidade hegemônica heteronormativa que, juntamente com as consequências da crise climática, intensificam dinâmicas de exclusão social e de precarização da vida.
Uma questão de justiça ambiental
Da mesma forma, o racismo ambiental atua nesta equação como uma tecnologia de poder que seleciona as vidas serão protegidas e aquelas destinadas à exposição ao risco e à invisibilidade. Esta lógica necropolítica não apenas restringe o acesso a direitos fundamentais deste grupo, mas também redefine trajetórias e produz novas formas de marginalização, como o ingresso no trabalho sexual masculino como estratégia de sobrevivência.
Reconhecer essas experiências é, portanto, um passo essencial para pensar políticas públicas interseccionais e formas de justiça climática que reconheçam a centralidade do território na cultura brasileira, a sexualidade para além da heteronormatividade e a juventude periférica na produção de vidas dignas.
As narrativas de Allan e Derick revelam a complexidade das estratégias de sobrevivência construídas por jovens garotos de programa em contextos de vulnerabilidade econômica e socioambiental no Recife. Longe de ser uma resposta individual ao racismo ambiental, o trabalho sexual masculino pode ser compreendido a partir de processos históricos marcados por desigualdades de classe, raça, gênero e sexualidade não-heteronormativa.
A partir de uma perspectiva antropológica, observamos que o racismo ambiental atua como um dispositivo que não apenas precariza vidas, mas também redefine modos de habitar, de se relacionar e de produzir identidades nas margens urbanas. Torna-se urgente que a Antropologia e os movimentos sociais ampliem seu olhar sobre os efeitos do racismo ambiental, incorporando atores invisibilizados nos debates sobre justiça ambiental.
Reconhecer as especificidades das experiências da população LGBTQIA+ em territórios periféricos afetados pela crise climática é fundamental para a construção de narrativas mais inclusivas, para que possamos enfrentar a exclusão que ameaça esta população.
Alberto C. B. de Souza não presta consultoria, trabalha, possui ações ou recebe financiamento de qualquer empresa ou organização que poderia se beneficiar com a publicação deste artigo e não revelou nenhum vínculo relevante além de seu cargo acadêmico.